2.11.07

Autofágico

Preciso arrumar as coisas
A poeira, os CDs, as contas espalhadas
As Pagas e as não pagas
Coisas mortas e coisas avivadas
periodicamente
Na minúcia de cada gesto inútil

Preciso arranjar alguém para bater o tapete
Para abrir vez em quando a janela
E deixar entrar algum ar pela casa
Nem que seja só para reforçar a impressão
De que a mesma dispõe de habitantes vivos

Preciso trocar de lugar os livros
Tirar o pó da estante
Ligar a televisão
Fazer algum barulho
Por mais ínfimo que seja
Para que os vizinhos não percebam
O silencio da solidão

Preciso gritar
Chorar talvez
Ou dar gargalhadas
Para tentar passar a idéia
De que há gente zanzando
Bebendo e se divertindo
No apartamento vazio

Quiçá até seja prudente
Berrar pela janela aberta
Pro povo que anda na rua
- Traga pra cá mais cerveja
Mais coca, vodca e vinho
Vamos brindar a incerteza

Preciso limpar a casa
Tirar, lavar as cortinas
Degelar a geladeira
Jogar muita coisa fora

Por uns quadros na parede
E fugir do apavoramento
Que causa o espaço morto

Preciso enganar o vento
Abrir a porta e faze-lo
Passar por dentro da sala
Soprar sobre as coisas todas
E sentir-se aconchegado

Preciso ir ao mercado
Preparar comes e bebes
Montar uma mesa farta
Fingir extrema alegria
E esperar os convidados
Ouvindo antigas canções

E então sentar no sofá
Beber minha própria bebida
Olhando os prédios lá fora

A certeza mais amiga
No inverno esta no conhaque
E no verão na cerveja

É fato, se ninguém chega
Ninguém também vai embora.



Vicente Portella

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