6.3.14

A GREVE

Março - Os garis do Rio de janeiro resolveram cruzar os braços nas vésperas do carnaval. Acostumados a trabalhar domingos e feriados sem receber horas extras, ao contrário do que reza a legislação trabalhista, os homens e mulheres que mantêm a cidade limpa se cansaram da exploração e do regime semiescravo imposto pela Prefeitura da segunda maior cidade do país. Por um salário muito próximo ao mínimo estabelecido por lei, até cadáveres o pessoal da limpeza era obrigado a carregar nos caminhões de lixo, por ordem de bandidos nas centenas favelas que monopolizam o território carioca. Sentiam-se burlando as estatísticas de segurança pública; Enganando a população. E tudo por pouco mais que o salário mínimo.
Além do salário baixo havia também o problema dos maus tratos, da baixa estima e da quase nenhuma motivação para o trabalho. Os agentes do governo que mandavam na empresa pública de lixo agiam como feitores, sem respeitar ninguém, agredindo os trabalhadores de forma verbal e às vezes até fisicamente. Não havia mais quem pudesse suportar tantos desmandos e tanta arrogância por parte dos donos do poder. Em outras áreas o governo também agia como inimigo declarado dos servidores, mas em nenhuma delas a relação era tão desabonadora e acintosa quanto na Comlurb. Para igualar com as relações escravocratas de tempos idos faltava apenas o castigo físico, o açoite. E havia quem garantisse que faltava muito pouco para chegar a isso.
- Quem muito se abaixa, expões os fundilhos – Costumava dizer Roberval, um dos garis mais antigos da companhia e também um dos mais revoltados.
A situação ficou caótica. Turistas desavisados tropeçavam em montoeiras de lixos pelas ruas, tudo ficou mergulhado na imundice, a cidade fedia. Os foliões formavam blocos e atravessam avenidas apinhadas de detritos e entulhavam-nas mais ainda, com seus próprios detritos, seu próprio lixo.
Aliado incondicional do governo, o principal jornal da cidade, subvencionado, estampou manchete garrafal imputando aos lixeiros o título de “Bloco dos sujos”. O Prefeito em entrevista ofendeu, agrediu os garis, chamando-os de bandidos. Ao contrário do que se previa, no entanto, a população, literalmente conhecedora do caráter do Prefeito, aderiu a greve e saiu em favor dos garis. Nas redes sociais a adesão foi colossal, esplendorosa, massiva. Assim como ocorrera com os bombeiros em tempos anteriores, a sociedade abraçou os profissionais de limpeza, solidarizando-se com suas agonias e limitações, e passou a questionar o alcaide.
Na verdade já fazia muito tempo que a cidade agonizava sob a batuta daquele Prefeito fútil, inapto e incapaz. Todas as urgências da cidade vinham sendo distorcidas e a administração sendo transformadas em objeto de lucro para poucos. Havia a questão dos ônibus ruins, caros, lotados e protegidos pela administração pública em detrimento do cidadão. Havia a questão da violência desenfreada, da falta de escolas, da remoção de barracos das famílias pobres ao mesmo tempo em que os tesouros municipais eram direcionados aos bolsos de poucos ricos. Havia até a questão, divulgada recentemente, das contas secretas do pai do Prefeito em paraíso fiscal, abastecidas com dinheiro público, segundo alguns. O fato é que a situação da cidade estava tão caótica e a sociedade tão arrependida de ter entregado o poder nas mãos de pessoas tão desqualificadas, que a coisa explodiu. Tudo de uma vez só.
Quando a Prefeitura tentou arquitetar uma farsa, comprando o sindicato da categoria e alguns membros do judiciário para obrigar o fim da greve, as pessoas se revoltaram completamente. Aos garis reunidos em protesto em frente à sede da Prefeitura, juntaram-se os estudantes. Logo depois vieram os professores, após decidir em assembleia super concorrida uma greve em solidariedade ao pessoal da limpeza. Os trabalhadores em saneamento - água e esgoto – foram os próximos na adesão e trouxeram também sua tropa para as ruas, aos gritos de Abaixo á ditadura.
A imprensa convencional era cada vez mais agressiva e entrevistava especialistas de todas as áreas possíveis, sempre em consonância com as posições do Governo e atacando os trabalhadores. Os repórteres profissionais já não conseguiam esconder o constrangimento, mas os apresentadores de tele jornais, geralmente recrutados entre os membros menos talentosos das famílias poderosas, muito mais bem pagos que os profissionais comuns, marretavam os grevistas. Alguns chegavam a dar chiliques inflamados diante das câmeras, como se os grevistas fossem empregados seus, particulares, e não servidores públicos concursados.
Nas redes sociais, no entanto, os governistas perdiam a batalha fragorosamente. Todas as chacotas possíveis eram feitas usando o nome do Prefeito e de seus principais asseclas, tanto na administração quanto na mídia. O tag #oPrefeitoDoRioFede assumiu rapidamente o primeiro lugar na lista dos temas mais postados no Twitter, e no Face Book mais de noventa por cento das postagens eram extremamente críticas ao Prefeito.
O Governador do Estado se manifestou, em defesa de seu pupilo, o alcaide, mas foi inapelavelmente abatido durante o discurso por vaias intermináveis. A multidão o cercava cantando palavras de ordem que ridicularizavam ambas as administrações: Prefeitura e Estado.
- Culpem alguém – berrava o governador para seus subordinados, já refugiado em no gabinete – Culpem a oposição. Culpem os radicais, os black blocs, os estudantes. Culpem alguém, seus incompetentes! Mandem a polícia pra lá. Quero todos espancados. Usem munição letal se preciso, mas acabem com essa manifestação. Eu odeio essa gente! Eu odeio povo!
Um assessor ligou para a Globo na mesma hora e deu a ordem para culpar a oposição.
Abril – O Mês começou com péssimas notícias para o Prefeito. Os trabalhadores da rede ferroviária fizeram uma assembleia e resolveram aderir à causa dos garis, parados à quase 30 dias. A cidade transbordava de lixo.
Maio – Amparados pela legalidade de sua data base, os trabalhadores em saneamento rejeitaram a proposta de acordo coletivo feita pelo governo, com cláusulas que previam a demissão sumária de 1% dos trabalhadores, mesmo os concursados, e partiram para a greve, se juntando de vez aos garis, aos ferroviários, aos estudantes e aos manifestantes na porta da Prefeitura. Mesmo diante das ameaças terríveis pautadas pelo Governador, os trabalhadores saíram em passeata cantando palavras de ordem contra a ditadura. Enfrentaram policiais truculentos e agentes infiltrados no movimento sem arredar um milímetro de suas posições.
Junho – Quando faltava uma semana para abertura da Copa, os rodoviários aderiram ao movimento. Acusados de ingratidão pelo Prefeito, que alegava ter construído corredores exclusivos para ônibus, respondiam na bucha, alegando que as rotas eram para beneficiar os donos das empresas de ônibus e não os trabalhadores e muito menos a população.
No dia da abertura da Copa o pessoal da saúde fez uma assembleia conjunta. Médicos, enfermeiros, maqueiros, todos os profissionais atuantes na área da saúde resolveram parar. Não por dinheiro, mas em protesto pela péssima acolhida que os governantes dão ao setor. Saúde vale mais que futebol – gritavam pelas ruas, em marcha, da Candelária até a Sede da Prefeitura, na Cidade Nova, ocupando quatro pistas da Av. Presidente Vargas com uma caminhada de um quilômetro de extensão. Juntaram-se aos manifestantes.
A imprensa do mundo inteiro estava no Rio de janeiro para cobrir a Copa, as manifestações, no entanto, chamavam mais a atenção. Sem transporte público as pessoas não podiam ir aos jogos. O Maracanã estava vazio, mas a rua em frente à Prefeitura estava lotada. Mais de um milhão de pessoas entoando cânticos de protesto. Os líderes do movimento, vários, de várias categorias e organizações diferentes, pediram aos manifestantes para darem-se as mãos.
- Ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil, gritavam os líderes ao microfone. Em uníssono.
- Ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil, respondia a multidão.
- Verás que um filho teu não foge à luta – Gritavam os líderes. A população respondia à altura, no mesmo diapasão.
No exato momento do pontapé inicial da Copa do mundo de futebol 2014 a multidão de mais de um milhão de pessoas acampada em frente à prefeitura do Rio de janeiro iniciou a oração do pai nosso, em voz alta, todos de uma vez, em honra ao Papa que mandou os jovens lutarem por seus direitos. Até os policiais que empurravam alguns manifestantes, tentando se utilizar da ação de revide para dar início à novas agressões, pararam. A imprensa começou a divulgar links ao vivo da multidão beata, rezando. Primeiro a TV francesa, depois a inglesa, a canadense e em pouco tempo o mundo inteiro reproduzia a romaria política em frente à prefeitura do Rio. Homens e mulheres. Pessoas de todas as raças, todas as idades e todas as crenças, inclusive os sem crenças, entoando o mesmo canto. O católico, o evangélico, o judeu e o gentio, o agnóstico e o ateu, todos adotando a reza como instrumento de resistência política pacífica, construindo um momento único na história da humanidade. E se somaram àquele, outros cantos, outras rezas, outras orações, de todas as categorias e religiões. O povo unido em comunhão para evocar para si o direito de julgar os seus algozes, de bani-los, de expulsa-los da vida pública como Jesus fizera com os vendilhões do templo.
O acampamento em frente à sede do poder executivo municipal se estendeu por mais de 30 dias, acumulando cada vez mais gente e ocupando cada vez mais espaço. A cidade ficou paralisada. Pessoas vinham a pé de todos os lados somar forças com aqueles que exigiam dignidade para todos. Em pouco tempo eram dois, três, quatro milhões de pessoas exigindo justiça e respeito para com a cidade, o Estado e sua população. Os estádios vazios e as ruas cheias. O povo roubando a cena da Copa do mundo e se fazendo presente e gritando aos quatro ventos sua insatisfação com os governantes.
Diante das arquibancadas vazias os jogadores do Brasil, entendendo o recado da população, extraíram cada newton da força disponível em suas almas e, com lágrimas nos olhos, conquistaram o campeonato internacional. Eles próprios decidiram dedicar a vitória à luta do povo brasileiro. A imprensa registrou o fato e o reproduziu mundo à fora, muitas vezes.
Outubro - Ninguém sabe direito o porque, mas o fato é que em outubro, apesar de todos os  candidatos se posicionarem como solidários ou responsáveis diretos pelo título, nenhum governante foi reeleito, nem no Rio de janeiro, nem em qualquer outro Estado ou município Brasileiro. Todos os parlamentares de situação, em todas as cidades do Brasil, perderam seus cargos e pouquíssimos foram os reeleitos pela oposição. Alguns hierofantes políticos interpretaram aquilo como consequência direta da revolta popular contra os gastos abusivos para a Copa do mundo, outros, consideraram o fenômeno uma mera coincidência. O fato é que nenhum dos governantes que acionaram forças militares e infiltradas para agredir o povo foi reeleito. Nenhum deles. Nem naquele, nem em outros pleitos. Nunca mais.

Cada um dos cidadãos presentes à manifestação, a maior em quantidade e duração de todos os tempos em terras brasileiras, ficou convencido de que sua participação, sua reza e sua disposição de luta foram fundamentais para a coroação daquele momento. E foi mesmo. O Brasil e o povo brasileiro saíram muito melhor de tudo aquilo. Mais fortes, mais vivos, mais livres e profundamente mais respeitados. Para todo o sempre.