16.4.15

Causa justa

O sujeito vinha com seu carro pela linha vermelha. Era uma Fiat azul, velha e bastante prejudicada, mas até que andava direitinho. Na altura do Cajú jogou uma guimba de cigarro pela janela. Duas viaturas da polícia que vinham logo atrás aceleraram, ligaram as sirenes e os policiais colocaram suas armas enormes para fora das viaturas. Uma delas foi atravessada na frente do carro do fumante e a outra atrás. Os policiais desceram com suas armas.
- Sai do carro vagabundo. Disse o policial metendo a arma pela janela do veículo.
- Eu não fiz nada. Retrucou o motorista já com as mãos para cima.
- Cala a boca, filho da puta, gritou um segundo PM já abrindo a porta do carro e arrastando o sujeito pelos cabelos.
O homem foi empurrado contra a lateral do seu próprio carro, de pé, e teve a cabeça empurrada contra a lataria do teto.
- Documentos. Carteira de habilitação, identidade, CPF, certificado de reservista... Eu quero tudo, safado.
- Mas seu guarda, eu não fiz nada. Retrucou o cidadão.
- Como não, seu cafajeste? Nós flagramos você sujando a rua. Tá pensando que isso aqui é bagunça, seu marginal?
- Mas isso não é crime. Eu tenho meus direitos...
- Teje preso. Vociferou o meganha visivelmente irritado – Isso é desacato à autoridade.
O fumante foi jogado na caçapa do carro da polícia antes mesmo que pudesse mostrar qualquer documento, e levado para a delegacia. A Fiat velha ficou lá, coitada, na linha vermelha, altura do Cajú, abandonada a sua sorte.


- Quem é esse verme? Perguntou o delegado ao policial enquanto olhava para o fumante com cara de nojo.
- Tava sujando a rua, dotô. Jogou uma guimba de cigarro pela janela. Respondeu o investigador responsável pelo caso.
- Que safado. Já deram umas porradas nele?
- Ainda não. Só os meganhas deram uns tapinhas. E é melhor espera. Algum vândalo filmou a abordagem dele e publicou na internet. Tá dando o maior IBOPE. É bom não fazer nada agora, daqui a pouco a imprensa está aqui.
Quando alguns jornalistas minguados apareceram na delegacia para saber o que aconteceu, pautados pelo Youtube, foram direto ao delegado, que explicou que o cidadão em questão foi flagrado jogando lixo tóxico na rua e, quando flagrado pela força policial, resistiu à prisão e desacatou as autoridades.
Imediatamente os jornalistas reproduziram a versão do delegado e publicaram matérias, fazendo link ao vivo, elogiando os esforços da polícia para manter a cidade limpa e protegida de vândalos.
E o fumante ficou lá, preso, algemado e sentado num banco, num corredor de passagem da delegacia.
- Olha o safado aí... Exclamavam os policiais sempre que passavam por ele.
Lá pelas tantas da noite chegou à delegacia, acompanhado por câmeras e equipes de filmagem, o Deputado chefe da comissão de direitos humanos da Alerj.
O fumante permanecia algemado, sentado no banco, e agora tinha o corpo meio entortado para a esquerda e uma expressão de fome no semblante.
Antes de qualquer outra ação o Deputado se reuniu com o delegado em seu gabinete, com as portas trancadas.
- E aí, Sandoval, como está a coisa? Perguntou o Deputado.
- Até agora nada demais, Serginho. O cara é um bedamerda que jogou uma guimba pela janela e tomou uma dura dos samangos. Mas ninguém bateu no sujeito.
- E porque não?
- Sei lá. Falta de tempo, talvez. O pessoal anda meio ocupado com as tarefas da delegacia.
- Puta incompetência, Sandoval. Essa tua equipe é uma porcaria. O vídeo tá bombando no youtube e você não me dá nada? Nem umas porradinhas? Você quer me foder, Sandoval? Tu acha que eu vou fazer IBOPE dizendo que esse merda foi bem tratado?
- Não seja por isso, disse o delegado enquanto pegava o telefone. Vou te dar um presentão, quer ver?  - Ô Agnaldo, disse o delegado ao telefone, tá vendo esse sujeito algemado no banquinho? Pega uns dois samangos dos bons e dá uma sessão de porradas nele. Não precisa quebrar nada, só faz sangrar um pouco pra fazer umas imagens boas.
Não deu cinco minutos, enquanto o delegado adoçava o cafezinho que pretendia oferecer ao Deputado, começaram a ecoar os gritos do fumante pela delegacia inteira.
- Maravilha, Sandoval. Vou ficar te devendo essa. Você é um gênio. Agradeceu o Deputado.
Os soldados batiam com cassetetes no fumante algemado enquanto a equipe do deputado registrava as cenas através de uma divisória escurecida, sem uma visão clara da ação. Os gritos eram perfeitamente audíveis, mas as imagens só mostravam silhuetas.
A equipe filmou ao vivo a entrada triunfal do Deputado, empurrando os soldados e se agarrando à vítima, usando seu próprio corpo como escudo, enquanto o delegado dava ordens para suspender o espancamento.
- Covardes. Vocês são covardes. Gritava o Deputado para os policiais e depois voltava para as câmeras.
- Isso é uma grave violação dos direitos humanos. Vou convocar o Governador à minha comissão. Ele vai ter que se explicar. O povo merece uma explicação.
Abraçado à vítima, salva do espancamento, o Deputado passou a dar entrevistas para os vários veículos de comunicação que chegavam à delegacia. Sempre fazendo uma defesa apaixonada dos direitos humanos.


Quando recebeu a notícia do ocorrido o Governador deu um soco tão forte na mesa que quebrou o tampo de vidro.
- Filho de uma puta. Gritou. Agora esse escroto vai me extorquir até a alma antes de parar com essa palhaçada.
Padilha, o chefe de gabinete ponderou que tal problema seria uma bobagem e garantiu que, caso o governo contemplasse todos os envolvidos, o furdunço morreria mais rápido do que surgiu. “E o Serginho é parceiro”, afirmava assessor, “Ele só está fazendo o marketing dele, mas chega junto quando necessário”.
- Chega junto é o cacete – esbravejou o Governador – isso é um filho da puta. Mas a culpa é do nosso pessoal na justiça eleitoral. A gente gasta uma grana absurda pra garantir nosso espaço e eles ainda deixam esses pulhas se elegerem.
- Fica tranquilo, Governador – disse Padilha. Está tudo sob controle.


Na redação do jornal, Tatiana escarafunchava sites de fofocas do mundo procurando alguma coisa que servisse para desqualificar o Papa. O sumo pontífice havia assumido algumas posições conservadoras em entrevistas recentes e aquilo era inaceitável para linha editorial do seu veículo. Precisava detona-lo, mas teve que suspender temporariamente a pesquisa, que lhe proporcionava tanto prazer, e correr para o palácio do governo.
- É pra detonar quem?  Perguntou ao editor chefe quando já saía às pressas do recinto.
- O Governador. Respondeu o outro. Pega os dados que conseguir e espanca o Governador.
Na versão oficial da imprensa, um drogado teria sido agredido covardemente pela polícia e salvo pelo deputado dos direitos humanos. Várias instituições ligadas à causa, ONGs de todo o país, foram convocadas para dar entrevistas agradecendo a intervenção parlamentar e estraçalhando com a reputação do governador.
Fotografado e filmado com o rosto inchado de tantas pancadas, o fumante foi apenas citado na matéria focada no conflito entre autoridades, umas fazendo o papel de mocinhos, outras o de bandidos.
Nas fotos de capa do dia seguinte, Deputado e Governador defendiam seus pontos de vistas e ongueiros agora se dividiam na defesa de um e outro.
De agressão, truculência policial e abuso de autoridade a coisa descambou para a indústria das drogas e daí para o tráfico de armas. Começaram a envolver fronteiras na discussão e até o papel da Polícia Federal.
O ministro da Justiça entrou no circuito dando uma entrevista. Falou tanta asneira que os jornalistas passaram algumas horas em conferência, se perguntando se publicavam ou não as declarações do Ministro. Publicaram.
A presidência da república, sentindo-se provocada, instituiu uma comissão para apurar os fatos e, sendo o caso, punir rigorosamente todos os envolvidos com o tráfico de drogas e armas em nível nacional.
A coisa ficou tão grave que decidiram fazer uma milionária campanha, em todo o território nacional, usando todos os veículos possíveis, rádio, televisão, cartazes e jornais de grande e pequeno porte, alertando o povo para a necessidade de proteger as nossas crianças das ameaças representadas por drogas, álcool e pedofilia, além de estabelecer a necessidade urgente de uma reforma política para acabar com todos os males que afligem a nação.
A campanha foi um sucesso. Tanto que nunca mais se tocou no assunto do fumante, perturbador da paz e da ordem, que continua até hoje na carceragem da delegacia de São Cristóvão aguardando a instauração do devido processo legal e posterior julgamento.

Os especialistas avaliam que ele pode acabar em Bangu 1 cumprindo prisão perpétua.