27.12.09

Adélia Prado, uma belíssima senhora mineira.


Só hoje eu assisti ao Sarau, programa do Chico Pinheiro na Globonews, que foi ao ar na noite de natal. Assisti e  adorei. Fazia tempo que eu não via Adélia Prado. O programa fez na verdade uma dobradinha com Adélia e Maria Lúcia Godoy, a cantora lírica, também mineira.
Pessoalmente, eu viajo na poesia de Adélia desde a adolescência. Seu texto é mágico, envolvente e cru. Completamente cru. Mas de uma crueza tão fantasticamente humana que não há quem possa sair ileso de uma leitura sua.
Lembro bem da primeira vez que vi Adélia na TV lendo o poema " Briga no beco", um texto fluido que, desde então, me ensinou a perceber a sutileza das idéias adversas, contrárias por natureza. A mulher que, por paixão, espanca outra no beco, se transforma em milagreira diante de tantas outras que se permitem ver suas paixões e suas ânsias frustradas por tradicionalismos comportamentais. Genial. Adélia é genial.
Rogério Torres, amigo que prefaciou o meu livro "Todas as mulheres", ainda no forno, me perguntou o porque da personagem principal do monólogo que dá nome ao livro ser Adélia. Respondi, por e-mail, que era uma homenagem velada a Adélia Prado. Vê-la agora na mídia, depois de tanto tempo, me deu a certeza de que a "minha" Adélia, apesar de não ser mineira, guarda, realmente, muitos traços em comum com Adélia Prado. Não no rosto ou no corpo, mas certamente na alma.
Chico Pinheiro abordou durante a entrevista um traço marcante da poesia de Adélia, o erotismo. Estupefato eu assisti Adélia, de forma magistral, traçar uma analogia direta entre o erotismo e a liturgia católica: "Este é meu corpo, tomai e comei". Adélia é demais.
Publico aqui dois textos de Adélia Prado. Quem ainda não a conhece certamente partilhará comigo a paixão por seus textos.


1 - Briga no beco


Encontrei meu marido às três horas da tarde
com uma loura oxidada.

Tomavam guaraná e riam, os desavergonhados.

Ataquei-os por trás com mãos e palavras
que nunca suspeitei conhecesse.

Voaram três dentes e gritei, esmurrei-os e gritei,
gritei meu urro, a torrente de impropérios.

Ajuntou gente, escureceu o sol,
a poeira adensou como cortina.

Ele me pegava nos braços, nas pernas, na cintura,
sem me reter, peixe-piranha, bicho pior, fêmea ofendida,
uivava.

Gritei, gritei, gritei, até a cratera exaurir-se.

Quando não pude mais, fiquei rígida,
as mãos na garganta dele, nós dois petrificados,
eu sem tocar o chão. 

Quando abri os olhos,
as mulheres abriam alas, me tocando, me pedindo graças.

Desde então faço milagres.





2- Objeto de amar

De tal ordem é e tão preciosoo
que devo dizer-lhes
que não posso guardá-lo
sem a sensação de um roubo:
cu é lindo!
Fazei o que puderdes com esta dádiva.

Quanto a mim dou graças
pelo que agora sei
e, mais que perdôo, eu amo.

Adélia Prado

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