A
questão cultural tem tomado ares interessantes nos últimos anos. Em movimento
único, ao mesmo tempo a cultura deixa de ser cultura e a burocracia se torna
elemento cultural.
O vício das chamadas
“políticas sociais” invadiu a cultura de maneira definitiva e a partir disso,
os valores vão se liquefazendo e escorrendo por entre todos os dedos que se
possa imaginar.
De um modo geral a coisa se
tornou caótica. O discurso adotado é aquele que põe na conta da cultura tudo
aquilo que se move ou se modifica sobre o planeta, o que permite ao militante
fazer um discurso profundamente amplo, politicamente correto e plenamente
inexequível sem perder a aureola de “militante cultural” tomada emprestado do
alheio.
Os interlocutores do
processo cultural nos dias de hoje podem ser tudo, menos agentes culturais. Por
mais que até disponham de imensa boa vontade.
Quem pinta, canta, produz,
atua, escreve, desenha, dirige ou cria alguma coisa virou mero coadjuvante de
um emaranhado técnico burocrático com requintes de altíssima tecnologia que, a
rigor, não guarda qualquer semelhança com a ação cultural propriamente dita.
O compromisso dos “agentes
culturais” está focado exclusivamente no cumprimento das tarefas determinadas
pelos tecnoburocratas encastelados nas máquinas públicas. Só isso.
Daí vem um emaranhado de
planos, conferências, portarias, editais e tudo mais que se possa inventar como
obstáculo, para que o elemento criador seja impedido de montar o cavalo no pelo
e realizar o que quer que seja. O meio se torna infinitamente mais importante
que o fim; o processo é incomensuravelmente mais valorizado que o produto
final... E o poder de obstacular se mantém intacto nas mãos dos mesmos
elementos de sempre.
Os discursos, no entanto,
são fantásticos e se utilizam até dos conceitos mais nobres de cultura, tipo o
antropológico, como instrumento de inviabilização da capacidade de realizar.
Tudo, rigorosamente, é posto na conta da cultura, menos a cultura propriamente
dita, como se existisse alguma lógica nisso.
A necessidade de politizar e
às vezes até partidarizar as ações abre o leque da militância numa abrangência
assustadora. E assim as políticas sociais, de gênero, de raça, de Direitos
humanos etc, ou seja, todo o manual do politicamente correto, é despejado sobre
os ombros da “cultura” mesmo que cada uma delas tenha seu foro específico.
Na prática, quem não
conseguiu palanque no seu movimento de origem se joga nos braços da cultura,
mesmo não sendo do ramo, pois aqui cabe tudo.
Paralelamente aflora a orfandade
de quem faz, quem realiza, quem atua realmente na área da cultura por
capacidade, talento ou até mesmo por instinto criativo. Para estes, sobra a lei
no sentido crasso daquele velho axioma que o poder dedica aos inimigos: “Aos
inimigos, a lei”.
A consequência direta disso
tudo é a aniquilação do processo cultural brasileiro, pois a industrialização,
a burocratização e a submissão da criatividade à cartesiana mentalidade
tecnicista reduz a cultura à pó.
O que sobra disso tudo são
as tchutchucas, os breganejos, os pagonojos e os BBBs da vida. As Xuxas e os
Faustões. Os crimes idolatrados na TV e a banalização da história de cada um,
de uma sociedade e de um povo inteiro.
Na prática o que se vê é o
discurso antropológico sendo corrompido por uma prática antropofágica, comedora
de consciências, próprias e alheias.
Se servir como lenitivo
podemos nos ufanar, nos regozijar, por ter inventado a intelectualidade de
festim, aquela que faz barulho, mas não causa qualquer dano ao sistema. Quem
sabe até, num futuro próximo, agachados sobre os escombros da cultura popular,
e por que não dizer, também da cultura erudita, nossos bravos “interlocutores
culturais” possam ler o livro do Afonso Celso – disponibilizado em meio digital
por algum super nerd informático — e introjetar no seu próprio ego a sentença
proposta pelo velho Conde:
“Porque me ufano do meu país”.
Vicente Portella
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