25.7.13

Sensações

O toque da pele na pele sempre gera sensações. Ondas de calor, expectativa de gozo, desejo... Libido alvoroçada. Explosão.
Mas tudo precisa ser muito discreto. Pessoas, mesmo com toda a idade da terra, continuam sendo só pessoas. Mesmo um leve toque pode soar agressivo no universo tosco dominado por seres obtusos, desacostumados a viver suas próprias emoções e enquadrados no padrão de comportamento estabelecido por imposições retrógradas que se acumulavam com o decorrer dos anos.
Há quem creia num Deus assexuado que vigia de perto cada uma de suas criaturas com o objetivo de proibir, a todas elas, os prazeres mais elementares. Um Deus tolo, que pune os instintos e incita as guerras. Um ser feito de sangue, lágrimas, angústias e frustrações.

Da janela de casa Fábio pensava nisso, pouco antes de sair, e fixava o olhar na rua, nas luzes que começavam a estourar por cima da cidade e nos espaços que lhe escapavam... Escuros, baldios, quase inexpugnáveis. Espaços aparentemente criados para pessoas especiais. Para aqueles que conseguem ver na ausência da luz, na mais completa escuridão.
A memória da boca ainda guardava o sabor do êxtase anterior e as pernas já estavam pelas calçadas procurando mais. Seguiam firmes, passo a passo, enquanto o nariz buscava os cheiros da noite e das pessoas, homens e mulheres temporariamente livres, à disposição. Gente boa e saborosa ondulando corpos, aproveitando o espaço raro entre uma luz e outra, entre uma sombra e outra, sempre exposta a um turbilhão de delírios.
Na esquina da Lavradio os olhos lânguidos de Vânia, que já acorrentavam Mônica a uma certa distância, se misturam, cruzaram com os dele, se entrelaçaram, quase gozaram assim. Beijos lúbricos, abraços encaixados saudaram os desejos, roçaram as carnes e seguiram juntos por entre as luzes e sombras. Agarrados, os três, vagueando. Bocas, corpos, peitos, nádegas, salivas, sexos. Todos apalpando aquele começo de madrugada.
Afagos e mais, muito mais, na porta do Odisseia. Olívia, Lana, Rodrigo e Zé. Sacros delírios amotinados em frente ao templo irradiando ao infinito sofreguidão e umidade. Tudo de uma vez, juntos. Um, depois três, mais quatro, os sete na cara de Homero, a partir do asfalto e das calçadas da Mem de Sá. Ulisses vários e muitas Penélopes enfrentando mares bravios em busca de amor e gozo. Sereias e monstros marinhos, ciclopes canibais, de tons e texturas às vezes distintas e às vezes assemelhadas, essencialmente misturados.
E o canto dos olhos de alguns poucos infelizes procurando sentidos impossíveis de existir no universo incalculável.
Cerveja. O sabor amargo brindado como homenagem muda às estrelas. Boca, língua, garganta, estômago e cérebro. Consciência de mente expandida. Enorme. Fantástica. E vodka, refresco de vodka, cigarros e luzes. Muito mais luzes nos olhos, na noite, nos braços, nos ventres, nos rostos. O toque por cima do toque. O gesto, o paladar. E as sombras fugindo das luzes mansas, breves e devoradoras. As luzes comendo sombras, sorvendo, fecundando, aliciando, tudo em meio à escuridão.
Já mais tarde, muito mais, a devassidão das cores explodia no caleidoscópio de corpos unos, adentrados, melados, do avesso. Uma quase sombra ainda resistia aos raios das primeiras horas e o gozo - o mais pleno dos gozos - já descansava sua imensidão alojado confortavelmente em todos os orifícios de cada um dos corpos largados pelo quarto.
Sete pequenas mortes e sete ressurreições. Sete sorrisos serenos se engalfinhando e dormindo. Sete brilhos radiantes. Sete alucinações.

....
 Vânia era a alucinação. Subindo pelas paredes prazeres ternos e doídos. Noite afoita servindo e servindo-se de tudo. Linda, lúdica, aberta, escancarada aos olhos, bocas, dedos, línguas e ações. Brincadeira de invadir, tocar, sorver, experimentar e seduzir. Explorar. Escarrapachada, corpo todo espalhado pelo chão do quarto exalando cheiro de flor, de fenda, de gruta, de florescência molhada por um orvalho próprio, íntimo e absoluto. Um tipo de aroma que invade a narina e inebria, condenando à vida. Vânia assim, dormida, e as mãos amigas ainda pregadas no corpo. Mão de Mônica no dorso, outras escondidas, de Lana e Zé, cobertas pelas virilhas e todas as outras tocando, marcando, tentando durante o sono agarrar sensações.
E Vânia assim, estendida, mexendo, revirando, arrastando o corpo adormecido, suavemente, e se expondo ao sonho. As curvas realçando, bunda nua, peito nu, sexo liso, depilado, banindo a angústia para plagas distantes. E aquele cheiro forte, denso, palpável, visível, saboroso. Do amor misturado, repetido, deleitado. Capaz de apagar todas as dores do mundo, da noite, de Vânia.
E a dor advinha do tapa, do aperto, dos dentes cravados nos seios, nos lábios e lábios da rosa. Das rédeas cabelo, do dorso cangalha, da boca de dedos, botões, cogumelos e belos segredos gritados, berrados, gemidos. Além do sussurro, dos gritos, das juras ali murmuradas. Dos apelos e do brinde meloso na boca ou por dentro do corpo, na flor, no botão ou por fora, no ventre. Do hálito quente, da voz perfumada. Do fel. Do prazer. Ela extasiada.

 ...
Zé com a mão comprimida no corpo da moça, dormindo, os dedos roçando de leve na rosa. Na noite viajou, foi dono de todo o folguedo. Dançou, gargalhou, beijou todas as bocas e ali, travesseiro de bunda bonita, ele só dormitava.
E pensava na festa. E buscava com o dedo, instintivo, entre as bandas, a fresta, o sagrado orifício, o sabor dos prazeres de todos na ponta do dedo enquanto acordava.
Na noite se deu e tomou para si o que o corpo queria. E foi homem, foi macho, foi vício, foi fêmea, menino, menina e foi tudo, sorveu em detalhes os sumos, os sabores do mundo. Bebeu os amores dos outros em cada tulipa após os desejos e deu seu amor. Deixou transbordar sua essência em bocas e seios, em flores, botões, em peitos, em cálices soberbos, serviu-a em taças, em copos, colheres e beijos, de todas as formas. E Vânia se abria, agora, dormindo, e o dedo encaixava. Na bela manhã e nos braços de um raio de sol que vazava, o Zé em carícias pensou que era a noite que tinha voltado. Ou nem acabado.


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E Lana quase dormia... De bruços. O quê? Quem? Quando? Onde? Por quê? Tudo rodopiava solto no cérebro durante a madorna. A angústia, a matéria, o tema, a foto da capa, o suor escorrendo ao redor do pescoço, o corpo postado de quatro, a bruta e perfeita invasão. Aturdida, cobriu durante o último sono a madrugada toda, em detalhes, com a intenção de olhos e instintos atentos, lembrou e esqueceu coisas, se deliciou e pediu perdão. E se perdoou. Mais que perdoou, amou. Voou pela noite, vagou entre as camas e as rodas, comeu as maçãs e fumou os charutos; bebeu no gargalo, chorou de emoção e fartura. Cantou, recitou poesia, malhou o sistema e as formas, as linhas, fontes, conteúdos. Amou quase tudo e expôs, ofertou, concedeu o objeto do amor.
Lana se fez e desfez várias vezes. Beijou todas as bocas, variou a paixão do instante em toques. Sussurrou pelo gozo, gemeu pela tese e rugiu pelo mundo. Outorgou ao prazer uma causa e dedicou seu êxtase à humanidade. Homens, mulheres, crianças, velhos. Gordos e magros. Negros, brancos e asiáticos, jorrou por amor ao planeta. Filosoficamente, poeticamente, hedonisticamente.

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Rodrigo dormiu e acordou soldado. Recebeu a alvorada postado e exultante. Usufruiu de tudo e de todas, não se dando a ninguém. Comeu, bebeu, sorveu, e provou cada anca exposta ao sabor do delírio. As moças, as bocas, as tetas, as nádegas, tudo por amor à Pátria e à noite. Por amor ao cheiro e ao sabor. Por amor à farra.  Acariciou, apalpou, apertou, beijou e lambeu toda tez feminina que esteve ao alcance das mãos e da língua. Despertou lúcido, pronto para uma nova refrega. Na boca o gosto da boca de Lana, dos peitos de Vânia, da flor de Olívia e o sumo espalhado no rosto, travando nos olhos, impregnando o nariz e se espalhando pelo céu da boca. E as cores, e os sons, e os sopros da guerra, de cada batalha, voando vaidosos diante dos olhos, à flor da memória.

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A luz da manhã não poupou a ressaca de Mônica. Preguiçosa, despertou num gemido com a mão despejada nas costas de Vânia. Sentindo, tocando, acariciando, recolhendo a memória da noite com ponta dos dedos na pele da amiga. Pensava no quanto a amante se deu e recebeu amores e no quanto ofereceu a ela, Mônica, prazeres tão inexplicáveis. Lágrimas e carinhos gerados por paixão avulsa, sem lastro, sem âncora, sem concepção. Um tipo de paixão que não se abandona e nem se permite que viva sujeita aos horrores de um cárcere. Mônica experimentou o ápice do desejo, uma fruta úmida e madura que sacia sede e fome numa mesma mordida.
Ajeitou-se para abraçar o corpo nu da amiga e permaneceu ali, calada, quase adormecida, suavemente saciada e feliz pelo instante, pela descoberta, pela sagração da vida e pelo festival de possibilidades estampadas no horizonte. Fez questão de nem abrir os olhos e atravessou a manhã curtindo variadas sensações.

 ...
Olívia trazia nos olhos a marca de Vênus. Tarô, influência de Aquário com alma de Peixes e números fosforescentes fervilhando nos olhos. Gurus, sacerdotes, templários, druidas, gnomos e seres alados como referência de vida. Gozo, como obsessão.
Na noite cumpriu rituais de luxúria. Sagrados, ocultos, divinos, prazer dedicado aos seres supremos. Jorrou pelas pernas os sumos dos deuses e amou quantas vezes lhe foi permitido.
Rompeu as fronteiras da carne e foi longe, buscou toda forma de luz no escuro dos corpos, em cada espaço, em cada abertura, em cada sentido, em cada instrumento ao alcance da mão.
A sacerdotisa extraindo os fluidos de seus seguidores. Sorvendo, pulsando, fazendo o sangue correr pelas veias de moços e damas. Sorrindo e se dando. Servindo e comendo manjares e polpas, serena e alucinadamente. Sagrada e profana, menina e senhora, torpor e razão.
Sete destinos cruzados na noite, rodopiando misturados, agarrados à conivência de um quarto, agasalhados pela escuridão e iluminados pelas luzes raras que acalantam a madrugada.


Sete gnomos, sete soldados, sete druidas e sete fadas. Sete pastores e sete iminentes pensadores. Sete elementos percorrendo a estrada. Mapeando as sensações da vida. Construindo templos em terras arrasadas.