Março - Os
garis do Rio de janeiro resolveram cruzar os braços nas vésperas do carnaval.
Acostumados a trabalhar domingos e feriados sem receber horas extras, ao
contrário do que reza a legislação trabalhista, os homens e mulheres que mantêm
a cidade limpa se cansaram da exploração e do regime semiescravo imposto pela
Prefeitura da segunda maior cidade do país. Por um salário muito próximo ao
mínimo estabelecido por lei, até cadáveres o pessoal da limpeza era obrigado a
carregar nos caminhões de lixo, por ordem de bandidos nas centenas favelas que
monopolizam o território carioca. Sentiam-se burlando as estatísticas de
segurança pública; Enganando a população. E tudo por pouco mais que o salário
mínimo.
Além do salário baixo havia
também o problema dos maus tratos, da baixa estima e da quase nenhuma motivação
para o trabalho. Os agentes do governo que mandavam na empresa pública de lixo
agiam como feitores, sem respeitar ninguém, agredindo os trabalhadores de forma
verbal e às vezes até fisicamente. Não havia mais quem pudesse suportar tantos
desmandos e tanta arrogância por parte dos donos do poder. Em outras áreas o
governo também agia como inimigo declarado dos servidores, mas em nenhuma delas
a relação era tão desabonadora e acintosa quanto na Comlurb. Para igualar com
as relações escravocratas de tempos idos faltava apenas o castigo físico, o
açoite. E havia quem garantisse que faltava muito pouco para chegar a isso.
- Quem muito se abaixa,
expões os fundilhos – Costumava dizer Roberval, um dos garis mais antigos da
companhia e também um dos mais revoltados.
A situação ficou caótica.
Turistas desavisados tropeçavam em montoeiras de lixos pelas ruas, tudo ficou
mergulhado na imundice, a cidade fedia. Os foliões formavam blocos e atravessam
avenidas apinhadas de detritos e entulhavam-nas mais ainda, com seus próprios
detritos, seu próprio lixo.
Aliado incondicional do governo, o principal jornal da cidade, subvencionado, estampou manchete garrafal imputando aos lixeiros o título de “Bloco dos sujos”. O Prefeito em entrevista ofendeu, agrediu os garis, chamando-os de bandidos. Ao contrário do que se previa, no entanto, a população, literalmente conhecedora do caráter do Prefeito, aderiu a greve e saiu em favor dos garis. Nas redes sociais a adesão foi colossal, esplendorosa, massiva. Assim como ocorrera com os bombeiros em tempos anteriores, a sociedade abraçou os profissionais de limpeza, solidarizando-se com suas agonias e limitações, e passou a questionar o alcaide.
Aliado incondicional do governo, o principal jornal da cidade, subvencionado, estampou manchete garrafal imputando aos lixeiros o título de “Bloco dos sujos”. O Prefeito em entrevista ofendeu, agrediu os garis, chamando-os de bandidos. Ao contrário do que se previa, no entanto, a população, literalmente conhecedora do caráter do Prefeito, aderiu a greve e saiu em favor dos garis. Nas redes sociais a adesão foi colossal, esplendorosa, massiva. Assim como ocorrera com os bombeiros em tempos anteriores, a sociedade abraçou os profissionais de limpeza, solidarizando-se com suas agonias e limitações, e passou a questionar o alcaide.
Na verdade já fazia muito
tempo que a cidade agonizava sob a batuta daquele Prefeito fútil, inapto e
incapaz. Todas as urgências da cidade vinham sendo distorcidas e a administração
sendo transformadas em objeto de lucro para poucos. Havia a questão dos ônibus
ruins, caros, lotados e protegidos pela administração pública em detrimento do
cidadão. Havia a questão da violência desenfreada, da falta de escolas, da
remoção de barracos das famílias pobres ao mesmo tempo em que os tesouros
municipais eram direcionados aos bolsos de poucos ricos. Havia até a questão,
divulgada recentemente, das contas secretas do pai do Prefeito em paraíso
fiscal, abastecidas com dinheiro público, segundo alguns. O fato é que a situação
da cidade estava tão caótica e a sociedade tão arrependida de ter entregado o
poder nas mãos de pessoas tão desqualificadas, que a coisa explodiu. Tudo de
uma vez só.
Quando a Prefeitura tentou
arquitetar uma farsa, comprando o sindicato da categoria e alguns membros do
judiciário para obrigar o fim da greve, as pessoas se revoltaram completamente.
Aos garis reunidos em protesto em frente à sede da Prefeitura, juntaram-se os
estudantes. Logo depois vieram os professores, após decidir em assembleia super
concorrida uma greve em solidariedade ao pessoal da limpeza. Os trabalhadores
em saneamento - água e esgoto – foram os próximos na adesão e trouxeram também
sua tropa para as ruas, aos gritos de Abaixo á ditadura.
A imprensa convencional era
cada vez mais agressiva e entrevistava especialistas de todas as áreas
possíveis, sempre em consonância com as posições do Governo e atacando os
trabalhadores. Os repórteres profissionais já não conseguiam esconder o
constrangimento, mas os apresentadores de tele jornais, geralmente recrutados
entre os membros menos talentosos das famílias poderosas, muito mais bem pagos
que os profissionais comuns, marretavam os grevistas. Alguns chegavam a dar chiliques
inflamados diante das câmeras, como se os grevistas fossem empregados seus,
particulares, e não servidores públicos concursados.
Nas redes sociais, no
entanto, os governistas perdiam a batalha fragorosamente. Todas as chacotas possíveis
eram feitas usando o nome do Prefeito e de seus principais asseclas, tanto na
administração quanto na mídia. O tag #oPrefeitoDoRioFede assumiu rapidamente o
primeiro lugar na lista dos temas mais postados no Twitter, e no Face Book mais
de noventa por cento das postagens eram extremamente críticas ao Prefeito.
O Governador do Estado se manifestou, em defesa de seu pupilo, o alcaide, mas foi inapelavelmente abatido durante o discurso por vaias intermináveis. A multidão o cercava cantando palavras de ordem que ridicularizavam ambas as administrações: Prefeitura e Estado.
O Governador do Estado se manifestou, em defesa de seu pupilo, o alcaide, mas foi inapelavelmente abatido durante o discurso por vaias intermináveis. A multidão o cercava cantando palavras de ordem que ridicularizavam ambas as administrações: Prefeitura e Estado.
- Culpem alguém – berrava o
governador para seus subordinados, já refugiado em no gabinete – Culpem a
oposição. Culpem os radicais, os black blocs, os estudantes. Culpem alguém,
seus incompetentes! Mandem a polícia pra lá. Quero todos espancados. Usem
munição letal se preciso, mas acabem com essa manifestação. Eu odeio essa
gente! Eu odeio povo!
Um assessor ligou para a
Globo na mesma hora e deu a ordem para culpar a oposição.
Abril – O
Mês começou com péssimas notícias para o Prefeito. Os trabalhadores da rede
ferroviária fizeram uma assembleia e resolveram aderir à causa dos garis,
parados à quase 30 dias. A cidade transbordava de lixo.
Maio
–
Amparados pela legalidade de sua data base, os trabalhadores em saneamento
rejeitaram a proposta de acordo coletivo feita pelo governo, com cláusulas que
previam a demissão sumária de 1% dos trabalhadores, mesmo os concursados, e
partiram para a greve, se juntando de vez aos garis, aos ferroviários, aos
estudantes e aos manifestantes na porta da Prefeitura. Mesmo diante das ameaças
terríveis pautadas pelo Governador, os trabalhadores saíram em passeata
cantando palavras de ordem contra a ditadura. Enfrentaram policiais truculentos
e agentes infiltrados no movimento sem arredar um milímetro de suas posições.
Junho –
Quando faltava uma semana para abertura da Copa, os rodoviários aderiram ao
movimento. Acusados de ingratidão pelo Prefeito, que alegava ter construído
corredores exclusivos para ônibus, respondiam na bucha, alegando que as rotas
eram para beneficiar os donos das empresas de ônibus e não os trabalhadores e
muito menos a população.
No dia da abertura da Copa o
pessoal da saúde fez uma assembleia conjunta. Médicos, enfermeiros, maqueiros,
todos os profissionais atuantes na área da saúde resolveram parar. Não por
dinheiro, mas em protesto pela péssima acolhida que os governantes dão ao
setor. Saúde vale mais que futebol – gritavam pelas ruas, em marcha, da
Candelária até a Sede da Prefeitura, na Cidade Nova, ocupando quatro pistas da
Av. Presidente Vargas com uma caminhada de um quilômetro de extensão.
Juntaram-se aos manifestantes.
A imprensa do mundo inteiro
estava no Rio de janeiro para cobrir a Copa, as manifestações, no entanto,
chamavam mais a atenção. Sem transporte público as pessoas não podiam ir aos
jogos. O Maracanã estava vazio, mas a rua em frente à Prefeitura estava lotada.
Mais de um milhão de pessoas entoando cânticos de protesto. Os líderes do
movimento, vários, de várias categorias e organizações diferentes, pediram aos
manifestantes para darem-se as mãos.
- Ou ficar a pátria livre ou
morrer pelo Brasil, gritavam os líderes ao microfone. Em uníssono.
- Ou ficar a pátria livre ou
morrer pelo Brasil, respondia a multidão.
- Verás que um filho teu não
foge à luta – Gritavam os líderes. A população respondia à altura, no mesmo
diapasão.
No exato momento do pontapé
inicial da Copa do mundo de futebol 2014 a multidão de mais de um milhão de
pessoas acampada em frente à prefeitura do Rio de janeiro iniciou a oração do
pai nosso, em voz alta, todos de uma vez, em honra ao Papa que mandou os jovens
lutarem por seus direitos. Até os policiais que empurravam alguns
manifestantes, tentando se utilizar da ação de revide para dar início à novas
agressões, pararam. A imprensa começou a divulgar links ao vivo da multidão
beata, rezando. Primeiro a TV francesa, depois a inglesa, a canadense e em
pouco tempo o mundo inteiro reproduzia a romaria política em frente à
prefeitura do Rio. Homens e mulheres. Pessoas de todas as raças, todas as
idades e todas as crenças, inclusive os sem crenças, entoando o mesmo canto. O
católico, o evangélico, o judeu e o gentio, o agnóstico e o ateu, todos
adotando a reza como instrumento de resistência política pacífica, construindo
um momento único na história da humanidade. E se somaram àquele, outros cantos,
outras rezas, outras orações, de todas as categorias e religiões. O povo unido
em comunhão para evocar para si o direito de julgar os seus algozes, de
bani-los, de expulsa-los da vida pública como Jesus fizera com os vendilhões do
templo.
O acampamento em frente à
sede do poder executivo municipal se estendeu por mais de 30 dias, acumulando
cada vez mais gente e ocupando cada vez mais espaço. A cidade ficou paralisada.
Pessoas vinham a pé de todos os lados somar forças com aqueles que exigiam
dignidade para todos. Em pouco tempo eram dois, três, quatro milhões de pessoas
exigindo justiça e respeito para com a cidade, o Estado e sua população. Os
estádios vazios e as ruas cheias. O povo roubando a cena da Copa do mundo e se
fazendo presente e gritando aos quatro ventos sua insatisfação com os
governantes.
Diante das arquibancadas
vazias os jogadores do Brasil, entendendo o recado da população, extraíram cada
newton da força disponível em suas almas e, com lágrimas nos olhos,
conquistaram o campeonato internacional. Eles próprios decidiram dedicar a
vitória à luta do povo brasileiro. A imprensa registrou o fato e o reproduziu
mundo à fora, muitas vezes.
Outubro -
Ninguém sabe direito o porque, mas o fato é que em outubro, apesar de todos
os candidatos se posicionarem como
solidários ou responsáveis diretos pelo título, nenhum governante foi reeleito,
nem no Rio de janeiro, nem em qualquer outro Estado ou município Brasileiro.
Todos os parlamentares de situação, em todas as cidades do Brasil, perderam
seus cargos e pouquíssimos foram os reeleitos pela oposição. Alguns hierofantes
políticos interpretaram aquilo como consequência direta da revolta popular
contra os gastos abusivos para a Copa do mundo, outros, consideraram o fenômeno
uma mera coincidência. O fato é que nenhum dos governantes que acionaram forças
militares e infiltradas para agredir o povo foi reeleito. Nenhum deles. Nem
naquele, nem em outros pleitos. Nunca mais.
Cada um dos cidadãos
presentes à manifestação, a maior em quantidade e duração de todos os tempos em
terras brasileiras, ficou convencido de que sua participação, sua reza e sua
disposição de luta foram fundamentais para a coroação daquele momento. E foi mesmo.
O Brasil e o povo brasileiro saíram muito melhor de tudo aquilo. Mais fortes,
mais vivos, mais livres e profundamente mais respeitados. Para todo o sempre.